Ajudante de suicida

quinta-feira, setembro 30, 2004

Grávidos do rei*

Dias atrás, quando entrei no ônibus a caminho do trabalho, vi um quase desconhecido meu. Trabalhamos no mesmo lugar. Quando passei por ele, ele não me cumprimentou. Na verdade, nem chegou olhar para mim, continuou sentado olhando duro para frente. Considerando a alternativa mais otimista, ele não me viu por estar ocupado mais consigo mesmo. Alguém mais atento perceberia que ele tinha a mesma expressão do homem que calculava n’O Pequeno Príncipe. Aquele que dizia algo como “sou um homem sério, não tenho tempo para brincadeiras”. O caso dele não chegava a ser grave, era no máximo uma altivez exagerada. Para você pode até parecer absurdo, vão ou idiota a ostentação dessa atitude, mas é preciso viajar até o mundo dessas pessoas para compreendê-lo. Assim como fez o personagem de Exupéry.
Após longas observações dessa classe especial, da qual o CECA possui excelentes exemplares, percebi que eles não são metidos porque fazem jornalismo ou possuem algum dinheiro, por exemplo. Eles o são por (de)formação. Aprenderam nos colégios bacanas em que estudaram e no conforto das casas amplas em que viveram, que, por algum inexplicável capricho genético, seus traseirinhos cheiravam melhor que os da maioria. Pelo justo motivo de que se o espaço a seguir ficasse em branco ia ficar feio e também porque os editores brigariam comigo, exponho a seguir, no mais rico estilo estereotípico, os principais gêneros de narcisistas, blasés, arrogantes e convencidos em geral:

Tipo Espectro: eles não caminham, flutuam. Assim como os fantasmas dos filmes. Não podem ser altos demais, pois assim teriam de enfrentar constantemente o inconveniente de baterem seus narizes no topo das portas ao passarem por elas. Consideram como o maior absurdo da história estarem tentando acabar com a tradição do tapete vermelho.
Tipo Umbigocentrista: corajosos defensores da idéia de que a Terra não gira em torno do Sol. São unânimes em achar que foi mesmo uma pena Galileu não ter sido queimado devido a sua tontice. Devemos agradecer todos os dias a eles pelas rotações do nosso planeta serem tão certinhas e por só precisarmos de um ano bissexto a cada quatro para corrigir o defeito no calendário.
Tipo Menino da bolha: se você olhar mais fixamente poderá até notar uma auréola de néon em suas belas cabeças que pisca um EU intermitente. Não é preciso dizer que a palavra mais linda para eles, dentre todas, são seus belos nomes. Alguns o chamam de pseudo-autistas. O fato é que eles já descobriram que não há um só intelecto na raça humana cuja conversa compense o hálito gasto nesta tarefa, que é, para eles, tão penosa e condescendente.
Tipo Transpirador de maravilhas: estes estão completamente convencidos de que qualquer coisa que eles falem, arrotem, pensem, façam ou produzam como resultado da metabolização alimentícia, é uma matéria sublime, livre de imperfeições mundanas. Devemos nos sentir privilegiados ao sermos escolhidos como alvo de suas magníficas reflexões.
Tipo só sou ateu porque eu sou Ele: agrupamento de todos os tipos anteriores num só Ser. Possuem um pronome de tratamento exclusivo: Vossa Divindade Suprema. É inútil dizer que neles tudo é Superlativo e Maiúsculo.
E lembrem-se: Narciso (aquele que se apaixonou pela sua própria imagem refletida) continua até hoje admirando seu reflexo no rio do inferno mitológico.

(*)Texto escrito para o ComunicaUel, jornal dos estudantes de Jornalismo da UEL.

quinta-feira, setembro 09, 2004

Um dia nublado de praia

Depois de cinco dia em Porto Alegre fomos à praia no sábado. Eu nunca tinha visto o mar. Para os mais piegas, isso deve ser a quarta coisa mais importante depois de ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro. Talvez tivesse ficado mais impressionado se eu nunca tivesse visto um rio grande. Mas, mesmo assim, o mar é bem mais que isso. Não cheguei a me concentrar para juntar todas as coisas felizes que se perderam para me emocionar. Talvez sozinho o fizesse. Sei que sempre consigo ser anti-clímax. Era só fechar os olhos, ouvir o barulho das ondas e ter saudades das coisas que nunca fiz. Olhei apenas. Acho que não tão longa e detidamente como deveria. Ainda assim, e mesmo que não tão romanticamente, foi um daqueles momentos onde o vulgar tem algo de sublime, onde a mais simples das coisas é extraordinária para alguém. Tudo porque eu nunca tinha visto o mar. Talvez não sentisse falta disso se passasse toda a vida sem tê-lo visto. Ou não, não sei.
Caminhei, de tênis, pela praia a procura de conchas e pedras. Não achei nenhuma que me agradasse, mas guardei uma malhada. Provei da água (era mesmo salgada como dizem, apesar de não ser tão ingênuo para duvidar). Apesar disso, não é de um salgado muito forte. Mesmo depois de cuspir, uns grãozinhos de areia ainda continuaram na minha boca. Só depois descalcei os tênis para pisar na água. Aí tive a verdadeira sensação do que é realmente o mar: ele pode te levar a qualquer lugar. É a coisa mais forte e fluída que eu já vi. Me conformei em não ter encontrado uma garrafa com um manuscrito dentro com a de Poe. Tirei fotos, fiquei alegre como criança e me lembrei que também se vive sem se preocupar.
Ao chegar em casa percebi o que representava minha pedra malhada: a imperfeição, a coisa mais indesvencilhável para mim. Pensei em dá-la para alguém, mas resolvi que ela deve ficar comigo mesmo. Ela me mostra como as coisas são, malhadas e ásperas. Ela é minha agora, mesmo sendo a pedra de praia mais feia de todas. É assim que as coisas são. Em casa também, aliás agora, me lembrei daquele trecho de poema do Rimbaud, que é o último diálogo do filme Eclipse de Uma Paixão, sobre ele e o Verlaine:

Foi reencontrada
Que?
A Eternidade
É o Mar misturado ao Sol