Ajudante de suicida

sexta-feira, novembro 19, 2004

A multidão de apertadores de botão*

Num dos contos de Crônica de um amor louco, Bukowski descreve sua rotina de jogador. Ele gostava de apostar nos cavalinhos, como os chamava. E freqüentava o hipódromo mais de uma vez por semana. Porém, o maior de todos os inconvenientes para ele era ter que esperar cerca de uma hora entre uma corrida e outra, tempo demasiadamente longo para um misantropo que não era dotado de um grande talento para aturar estranhos e era obrigado a esperar com os outros. Enquanto isso, ele tomava alguma coisa ou elaborava mais um de seus sistemas de apostador, mas, mesmo assim, aquela era uma hora vazia. Um saco.

Essa rotina baseada na espera é compartilhada por bilhões de pessoas todos os dias. Não há nada de extraordinário nisso. Ser capaz de suportar a própria existência com ânimo é uma característica considerada inerente à maioria dos seres humanos. Além disso, abreviá-la só é o final de poucos: ou por preguiça ou por convicção. Seja como for, os dias têm que ser preenchidos de alguma forma. E eles o ocupam com seus trabalhos, bem pagos ou não, insuportáveis ou não, imbecis e inúteis ou não. Não raro sentem uma grande insatisfação por eles. São oito horas diárias estripando peixes, varrendo sarjetas, empilhando caixas, fazendo com que almofadinhas se sintam confortáveis, cortando a grama, atendendo gente reclamona que sempre acha que a culpa é sua, batendo à máquina, assentando tijolos, calculando, fazendo com que o banheiro de uma humilde mansão brilhe mais que as jóias da patroa, abastecendo carros, cuidando do dinheiro do banco, limpando vidros, catando lixo, garantindo a segurança de bacanas, oferecendo produtos inúteis por telefone, dirigindo ônibus, apertando botões.

Não é preciso ser ascensorista para ficar fazendo isto o dia todo. A massa infinita de indivíduos infelizes que moram alheados da riqueza parodiam triste e intermitentemente Chaplin em Tempos Modernos. Rosqueam porcas e enlouquecem. Manuseiam as máquinas como uma delas, absorvendo seu automatismo e regularidade, tudo em nome da eficiência. O tédio que daí advém é aplacado racionando as idéias e crendo na certeza da chegada da última hora para que se possa ir.

Luís Fernando Veríssimo escreveu uma vez que há dois tipos de pessoas que decidem sua vida: sua família e seus vizinhos. Seus pais, ou mais exatamente os genes deles, determinam se você vai ser um galã ou se vai sofrer comparações com dragões ou com outros seres medonhos. Já seus vizinhos (dependendo da potência do aparelho de som deles) vão decidir se você vai ouvir um bate-estaca ou Beethoven. Veríssimo só se esqueceu da terceira classe de pessoas tão influentes quanto as anteriores, que são os temidos colegas de trabalho. Baseando-se nas inequívocas propagandas de colchões, aqueles são como estes, ou seja, se passará pelo menos 1/3 da vida com eles. É por isso que facilmente podem se tornar seus algozes, principalmente dentro de um de seus habitats mais comuns: o escritório. Para quem ocupa um lugar mais ameno na escala de trabalhos considerados idiotas, o escritório é um dos locais mais aceitáveis. Neles não é incomum que se reine um certo clima nonsense, típico recurso mecânico para escamotear o asco do ambiente, para adiar que se mande tudo à merda ou para demonstrar que o que sempre se sobressai mesmo é o famoso senso de humor à brasileira. É a prática da filosofia do “fazer-o-que?”, “o que não tem remédio”...

Mais não só seus companheiros de jornada são culpados por seu fardo existencial. Eis aqui uma demonstração rasteira da teoria da causa e conseqüência: uma grã-fina discute com o marido, que é chefe de um sujeito; depois de levar um esporro do primeiro, este chega em casa e briga com a mulher, e esta premia com uma memorável surra o filho que, sem ter em quem descontar, chuta o cachorro, pois não consegue se conformar pela falta de consideração de não ter sobrado ninguém em quem ele pudesse descontar sua cólera. Finalmente o cachorro, com sua impetuosidade canina e frustrado depois da experiência com o menino, morde o carteiro. Então este sim encontra motivos suficientes para se achar descontente com seu emprego. Bukowski, que também foi carteiro, deve ter levado sua cota de mordidas e sabia exatamente que é preferível esperar a hora da próxima corrida do que gastar o dia esperando ele passar enquanto se entrega cartas. Mesmo que esta hora seja um saco.

(*Crônica escrita para o segundo jornal-laboratório da 3º ano de Jornalismo da UEL).