Ajudante de suicida

quarta-feira, março 23, 2005

Enquanto meus ossos cresciam eles doíam*

Crescer é se domesticar (um processo que é sistematicamente imposto), me disseram. E viver é se empedernir, digo eu. Chega um tempo em que intimamente se diz: ontem foi a última vez que chorei. E esta é a certeza mais inexorável que se tem, mesmo que ela se mostre esporadicamente falsa. Não é uma promessa, antes uma constatação desiludida, um estado sóbrio onde se pode avaliar o que restou. Claro que não é válido para todos. Mas o que muda de uma pessoa para outra é o tipo de monstros que vão ter que enfrentar (Nietsche alertava que devia se ter cuidado para não se tornar um deles). O mundo conspira para que nos tornemos insensíveis, se utiliza do tempo para nos degenerar, nos deixando um corpo apenas. Um dia acordamos e percebemos o que aconteceu, e nos surpreendemos com a calma de quem olha e diz: já é dia. Com a alma roubada nos deixamos levar. Continuamos, automáticos, esperando amanhã. Trabalhando, conversando, fazendo coisas simples. Já não temos a consciência semi-presente que torna sempre iminente o possível.
Antigamente nos sentíamos felizes só de pensar que se chovesse naquela tarde comeríamos pipoca assistindo a um filme antes de cochilarmos de mau jeito no sofá. De qualquer forma a história não interessava mesmo. Era só uma das condições para um dia perfeito. Naquela época o mundo era um mistério infinito: as nuvens eram feitas de algodão, os sonhos de felicidade, o mar de imensidão, a existência de beleza, a beleza de mágica, e esta de momentos únicos em meio a outros sem importância.
A infância, porém, é esquecida antes de ser deixada para trás. E como adultos somos potenciais candidatos a pedregulhos. Até que chega-se a um tempo em que passa-se a acreditar que a antiga mágica da realidade é feita na verdade de truques baratos e sentimentais nos quais nunca se tinha prestado muita atenção. E um dia desprevenidamente se diz: grande merda. Então nos tornamos bruxistas diurnos com os olhos injetados de sangue ou somente ríspidos indiferentes.

(*) Serve the Servants - Nirvana

Rotina

Perturbado, andei por pura pirraça pisando apenas nas emendas das calçadas por onde passei. Inventei numa hora inútil uma nova filosofia para se viver da maneira errada, ignorando o bom senso e os costumes rançosos, um sistema minuciosamente imperfeito, que não garante minimamente a eficácia de si mesmo. Ri do que reluzia, medi o quanto imbecil é o valor dado às coisas, debochei de todas as verdades absolutas, considerei idiota tudo o que não tem preço. Troquei minha vida por um amor vão: vão porque acaba, vão porque tive que entregar minha vida para vivê-lo. Resolvi que não se escolhe as coisas, apenas se decide pelo mais suportável. Achei a existência estúpida e cruel a sua beleza. Tudo alternadamente, no eterno fluxo do novo, para fugir do tédio angustiante da espera. Me queimei, me cortei, me furei; mas só enquanto o flagelo dava lugar à desilusão. Insisti em fazer tudo do modo mais complicado possível. Enquanto não me ocupava com meu futuro permanente, eu dormia, exausto. Esperava acordar num dia bom. O dia em que te beijei. Pois já não sei o que fazer na maioria deles a não ser me repetir. Acho que deveria parar no meio da rua, sob da chuva, com a boca erguida para beber as gotas d’água, porque não há mais nada a fazer além disso, simplesmente porque a única coisa lógica que posso fazer é ficar assim, olhos no alto, tentando me resfriar persistentemente. Logo perceberia que mesmo se enchesse a barriga de água nem uma folha de árvore se desprenderia por minha causa. Depois iria embora vencido. Depois esperaria. Pelo tempo, por um sinal para assumir a posição seguinte, mais cômoda para sofrer, uma que esteja mais de acordo com meu sentido ridiculamente trágico da coisas. Resumi minha vida para que não ficasse tão grande. Mas cada fragmento continuava sendo ela própria. Me iludi pensando que não agüentaria, dividi meu cansaço pelos dias e me descobri um casmurro. Depois de tudo cheguei aqui, sozinho. Patético, ansioso, teimando acreditar. Não ganhei coisa alguma com isso. Mas, como é preciso fazer algo, eu espero.